Da infeliz dicotomia entre atos de gestão pública e atos de gestão privada – uma breve psicanálise ao âmbito da responsabilidade civil extracontratual do Estado e das demais pessoas coletivas de direito público:


A responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas corresponde a um conjunto de circunstâncias a partir das quais emerge, em concreto, para a Administração Pública e para os titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes, a obrigação de indemnizar pelos prejuízos causados a um particular, no exercício da atividade administrativa (por ação ou omissão), com base no art. 22º e 271º CRP.

Pelo art. 212º/3 CRP, os tribunais administrativos são competentes para julgar os litígios emergentes da responsabilidade civil administrativa, sendo-lhes atribuída uma reserva material de jurisdição. Esta reserva material não é absoluta, pelo que não se impede a atribuição aos tribunais comuns de competências no âmbito de matéria administrativa tal como os tribunais administrativos podem julgar questões não apenas relacionadas com o Direito Administrativo.

Quanto à nossa psicanálise, começamos por referir que o conceito de gestão privada corresponde à atividade que a pessoa coletiva exerce, despida de poder público, atuando numa posição de paridade com os particulares, com submissão às normas de Direito Privado. Já o conceito de gestão pública corresponde ao exercício de um poder público que integra a realização de uma função pública da pessoa coletiva, dirigida aos fins de Direito Público que a mesma prossegue, com submissão ao Direito Público que atribui poderes de autoridade.

Antigamente distinguia-se entre gestão pública e gestão privada, (art. 1º do Decreto-Lei n.º 48051/67), o que se refletia na falta de unidade na jurisdição administrativa em sede de responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas.

Em 2002, felizmente, essa distinção veio a ser eliminada do ETAF (art. 4º/1, alíneas g) e h)), tornando-se a competência independente da natureza do ato de gestão.

Na exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 93/VIII, a jurisdição administrativa passou a ser competente para apreciar todas as questões de responsabilidade civil das pessoas coletivas de direito público, independentemente do regime, estabelecendo-se no art. 4º/1, alíneas g) e h) ETAF um critério de incidência subjetiva, sendo o determinante se a pessoa coletiva é pública.

Mais tarde, surgiu a Lei n.º 67/2007 que não se refere expressamente a atos de gestão pública ou gestão privada, recorrendo antes às expressões “exercício das suas funções” e “função administrativa”, nos seus arts. 7º/1, 8º/2, particularmente o art. 1º/2 RRCEE, que refere “prerrogativas de poder público”, o que tem permitido interpretações no sentido da distinção entre gestão pública e gestão privada.

Vários autores, como CARLA AMADO GOMES, têm retirado do RRCEE da expressão “função administrativa” o tradicional conceito de ato de gestão pública. Esta autora considera que os critérios utilizados para distinguir a gestão pública da gestão privada são os critérios utilizados no art. 1º/2 e 5 RRCEE, estando em causa apenas uma mudança de terminologia, mas não substantiva.

A nosso ver, consideramos que a “esquizofrénica” distinção entre gestão pública e gestão privada já não se encontra presente no ETAF nem no RRCEE, pois quando o art. 1º/2 RRCEE refere “princípios de Direito Administrativo”, estes são aplicáveis quer seja uma atuação pública ou privada (art. 2º/5 CPA). A atuação da Administração Pública tem sempre como fim a prossecução do interesse público, quer seja num ato de gestão pública ou num ato de gestão privada. Logo, uma atuação administrativa de gestão privada continua a integrar-se no conjunto de funções atribuídas à Administração Pública, e assim de acordo com o art 22º CRP.

Destaca-se como elementos históricos em que se baseia esta distinção: na ideia de uma Administração autoritária; e na exposição de motivos que refere expressamente o abandono desta distinção. Por fim, um elemento literal, que se reflete na eliminação da distinção entre gestão pública e gestão privada do art. 4º/1, al. g) ETAF.

Não é nítida a separação entre gestão pública e gestão privada, que é muito difícil (se não impossível) de caraterizar e demarcar, abrindo caminho a diversas interpretações, que por sua vez, geram uma grande insegurança jurídica, pelo que deve ser abandonada. Tanto que o entendimento jurisprudencial tem sido no sentido da unidade de jurisdições, como referido no Ac. do STJ de 10/04/2008 e no Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 17/01/2017.

Do art. 1º RRCEE retiramos que a distinção entre gestão pública e gestão privada perdeu a sua importância no plano processual (como se verifica no ETAF), mantendo-se apenas a sua relevância no plano substantivo. Contra, MÁRIO AROSO DE ALMEIDA considera que ainda se mantém a sua relevância no plano processual (art. 4º/1, alínea i) ETAF e 1º/5 RRCEE). Não concordamos com este autor, pois o que retiramos do art. 1º RRCEE é que existe uma diversidade do regime jurídico substantivo, consoante o ato seja de gestão pública ou de gestão privada, que leva o juiz administrativo a ter de aplicar, no primeiro caso, o regime de direito público (RRCEE), ou o regime de direito privado, no segundo caso (arts. 483º e ss. CC).

Assim, defendemos uma consagração de unidade de jurisdições, com um alargamento da competência dos tribunais administrativos a atos de gestão pública e de gestão privada, respeitando assim o art. 212º/3 CRP.

A referência a esta distinção foi retirada, e bem, da nossa legislação. Nesse sentido, é de parabenizar o legislador, apesar de deixarmos a crítica às dúbias expressões utilizadas no RRCEE, que trouxeram desnecessárias incertezas jurídicas no âmbito do Contencioso Administrativo! Acabamos com uma sugestão: o legislador poderia ter apenas afirmado que o regime em causa se aplicava quando se estivesse perante uma atuação lesiva da Administração que agisse ao abrigo de disposições do Direito Administrativo, abrangendo a gestão pública e a gestão privada, sem quaisquer equívocos.

Bibliografia:

-ALMEIDA, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo, Almedina, 3ª Edição, 2017;

-ANDRADE, José Carlos Vieira de, A Justiça Administrativa, Almedina, 16ª Edição, 2017;

-BARRA, Tiago Viana, A responsabilidade civil administrativa do Estado, acessível em: https://www.oa.pt/upl/%7B915b1a77-e7cb-48fa-9b7c-3399815c19dd%7D.pdf, no dia 17/10/2019;

-CADILHA, Carlos, O novo regime de responsabilidade civil do Estado e demais entidades públicas pelo exercício da função administrativa, acessível em: https://www.csm.org.pt/ficheiros/eventos/encontroscsm/06eacsm/6encontrocsm_carloscadilha2.pdf, no dia 17/10/2019;

-GOMES, Carla Amado e Miguel Assis Raimundo, Topicamente – e a quatro mãos – sobre o novo regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas, in Revista de Direito Público e Regulação, nº5, 2010;

-MOURA, Bruno, A responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas no exercício da função administrativa: uma breve análise do regime português, acessível em:  https://www.researchgate.net/publication/272641485_A_responsabilidade_civil_extracontratual_do_Estado_e_demais_entidades_publicas_no_exercicio_da_funcao_administrativa_uma_breve_analise_do_regime_Portugues, no dia 17/10/2019;

-SILVA, Vasco Pereira da, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, Almedina, 2ª Edição, 2013.


Joana Perdigão, 4º ano, TA - nº de aluno: 56821

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