Estará o interesse processual contido no pressuposto da legitimidade?

A regularidade da constituição da instância depende da observância de um conjunto de requisitos de admissibilidade do julgamento do mérito da causa, aos quais é dado o nome de pressupostos processuais. Estes são indispensáveis para que possa ser proferida uma decisão sobre o mérito da causa, isto é, uma justa composição do litígio. 
É possível reconduzir os pressupostos processuais a duas categorias: os pressupostos relativos aos sujeitos e os pressupostos relativos ao objeto do processo, sendo que os primeiros dizem respeito ao tribunal e às partes, e os segundos são requisitos de cujo preenchimento a lei faz depender a admissibilidade do julgamento do mérito do processo, em razão do seu objeto. 
De entre os pressuposto que nos interessam para o efeito, destaca-se a legitimidade processual, uma vez que é o único que dispõe de regulação própria no CPTA, e ainda o interesse processual. Contudo, surge a questão de saber como qualificar o interesse processual. Devemos considerar que se insere no pressuposto da legitimidade processual ou, por outro lado, deveremos considerar que é um pressuposto autónomo?

Comecemos, então, por analisar o que é a legitimidade processual e, de seguida, analisaremos o que se entende por interesse processual, fazendo depois uma análise aprofundada do que se tem entendido sobre a questão em causa. 
Em primeiro lugar, importa perceber que a legitimidade processual se distingue do interesse em agir ou interesse processual, no sentido em que a legitimidade, nas palavras do professor Miguel Teixeira de Sousa é o interesse direto, pessoal e legítimo em demandar judicialmente (estamos perante uma definição de legitimidade ativa que é a que releva para a distinção em causa); enquanto que o interesse em agir, enquanto pressuposto processual, apenas exige a demonstração da necessidade do recurso à tutela judicial, não a verificação das condições da procedência da pretensão[1]
O interesse materializa-se na indispensabilidade de o autor recorrer em juízo para a satisfação da sua pretensão, quer isto dizer que o interesse processual do autor da ação ou do requerente de qualquer providência judicial depende da necessidade de obtenção do título judicial solicitado. 
Por isso, o interesse processual afere-se pela necessidade de tutela judicial e pela adequação judicial empregue pela parte. 
Para o Professor Vieira de Andrade, o interesse processual é um pressuposto que exige a verificação objetiva de um interesse real e atual. Ou seja, exige-se uma certa utilidade na procedência do pedido. 

Chegados a este ponto, facilmente se justifica o interesse processual como pressuposto processual, aliás, podemos referir que o interesse processual complementa a legitimidade ativa, uma vez que não basta a titularidade da posição jurídica substantiva para justificar o recurso aos tribunais a fim de obter a sua apreciação. Por isso, é necessário que o autor tenha também interesse processual, para além de legitimidade para interpor a ação.

Mas será isso suficiente para afirmar que o interesse em agir está contido na legitimidade processual?
O Professor Vieira de Andrade afirma ainda a autonomia do interesse processual “sempre que a admissibilidade da iniciativa processual do autor tenha de, por força da lei, ser concretamente aferida por um interesse que complemente a titularidade de uma posição jurídica substantiva ou o critério legal substantivo de atribuição da legitimidade”. Assim, estamos aqui perante uma materialização da ideia de que a utilidade em causa há-de ser digna de tutela jurisdicional, como igualmente resulta do Acórdão do STA de 13/01/04 – Processo nº1761/02. 
No entanto, excecionalmente, no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12/4/1994 (processo nº 33395), dispõe-se que o interesse processual não tem autonomia no Contencioso Administrativo, integrando assim o conceito de legitimidade. Seria, nesse caso, uma concretização deste pressuposto.

Discordo do entendimento sufragado pelo STJ neste acórdão, na medida em que, apesar de o CPTA não classificar expressamente o interesse processual como um pressuposto, o art.39º evidencia uma expressão autónoma deste, num dos domínios em que ele assume maior relevo, e que não se confunde com a legitimidade. Para além disso, encontramos no texto do CPTA referências indiretas, por exemplo, nos arts.54º e 55º, que levam a classificá-lo como pressuposto independente. De referir ainda que maioria da doutrina, bem como a maioria da jurisprudência, entendem que o interesse processual é um pressuposto autónomo da legitimidade. 

O Professor Mário Aroso de Almeida destaca dois domínios em que, em processo administrativo, se coloca a questão da existência de interesse em agir: 

1)    O primeiro resulta do art.39º CPTA, que diz respeito às ações meramente declarativas ou de simples apreciação. Estas visam acorrer a lesões efetivas ou a ameaças de lesão. No domínio de uma ação para reconhecimento de direitos, configurável como uma ação de simples apreciação a que alude o artigo 39º do CPTA, para que se verifique o pressuposto processual autónomo do interesse em agir, basta que se demonstre a utilidade ou vantagem imediata na declaração judicial pretendida.

2)    O segundo domínio refere-se a ações preventivas dirigidas à condenação à omissão de perturbações ilegais ainda não ocorridas, que se dirigem à imposição de deveres de abstenção e à obtenção de uma tutela inibitória, em situações de ameaça de agressões ilegítimas. 

Mas esta questão também se coloca noutros domínios, nomeadamente, quanto aos pedidos de impugnação de atos e normas. Neste caso, defende o Professor Vieira de Andrade que o conceito vasto de legitimidade engloba o interesse pessoal e direto no resultado. Por isso, a necessidade de proteção judicial terá apenas uma função residual. Impõe-se, deste modo, a atualidade ou a probabilidade do interesse na anulação do ato ou na declaração de ilegalidade da norma. 

A questão do interesse processual surge ainda ligada ao “carácter direto” do interesse, previsto no art.55º nº1 alínea a) CPTA, uma vez que estamos perante uma manifestação implícita do interesse processual, que se encontra em sede de legitimidade. O carácter direto do interesse tem que ver com a questão de saber se existe um interesse atual e efetivo em pedir a anulação ou a declaração de nulidade do ato que é impugnado.
Partindo do princípio que o impugnante é titular do interesse, tendo então legitimidade, trata-se de saber se o impugnante se encontra numa situação efetiva de lesão que justifique a utilização do meio impugnatório. 
Neste sentido, o Supremo Tribunal Administrativo sustenta que o interesse direto deve ser apreciado em função das vantagens que o impugnante alega poderem advir-lhe da anulação do ato, sendo que “os efeitos decorrentes da anulação devem repercutir-se, de forma direta e imediata, na esfera jurídica do impugnante”. Tem, assim, legitimidade para impugnar quem “espera obter da anulação do ato impugnado um certo beneficio, sendo de repercussão direta na esfera do interessado.” Assim, o requisito do carácter direto tem que ver com a questão de saber se o alegado titular do interesse tem efetiva necessidade de tutela judiciaria, ou seja, com o interesse processual, no entendimento do Professor Mário Aroso de Almeida. 

Posso então concluir que, no Contencioso Administrativo, o interesse processual assume-se como um pressuposto autónomo, que apesar de se apresentar de certa forma conexo com o pressuposto da legitimidade, é ainda assim independente deste. 

Bibliografia:

1.     Mário Aroso de Almeida, «Manual de Processo Administrativo», 3ª ed., Almedina, Coimbra, 2017. 
2.     Sérvulo Correia, «Direito do Contencioso Administrativo», I vol., Lex, Lisboa, 2005. 
3.     Vasco Pereira da Silva, «O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise – Ensaio Sobre as Ações no Novo Processo Administrativo», 2ª edição, Almedina, Coimbra, 2009. 
4.     Teixeira de Sousa, “Falta de interesse processual no Contencioso Administrativo” Anotação do acórdão STA 06/05/1997 processo 42131

Catarina Moreira 
Turma A Subturma 7 Nº56745




[1] Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul, de 29-01-2015, processo nº 06242/10

Comentários