A figura dos contrainteressados no Contencioso Administrativo


legitimidade, enquanto pressuposto processual, pode ser dividida em duas vertentes: ativa e passiva. Possui legitimidade ativa quem é suscetível de ser autor numa concreta ação em função do objeto com que ela surge configurada e possui legitimidade passiva quem deva ser demandado na ação com o objeto configurado pelo autor. 
Interessa-nos particularmente, para efeitos da matéria em causa, a vertente passiva do pressuposto da legitimidade. 
legitimidade passiva caberá, por regra, a uma pessoa coletiva pública, na medida em que seja titular do dever na relação material controvertida, e ainda aos contrainteressados. Assim, é na legitimidade passiva que a figura dos contrainteressados se insere e ganha relevância. 

Depois de uma contextualização, releva identificar, em primeiro lugar, a importância deste tema. A figura do contrainteressado ganhou uma especial importância na moderna dogmática jusadministrativa. 
A visão tradicional que configura todas as decisões administrativas no âmbito de uma relação bilateral entre a Administração Pública e um determinado destinatário mostra-se atualmente ultrapassada em muitos setores de atividade do Estado moderno. A atividade administrativa torna-se, assim, dotada de uma crescente multilateralidade. 
Surge, então, um conjunto de posições jurídicas de terceiros que passam a integrar, com o imediato destinatário da decisão e a Administração Pública, uma verdadeira relação jurídica multipolar. Esses terceiros passam a possuir um interesse na destruição ou manutenção de decisões que projetam efeitos sobre a sua esfera jurídica, circunstância que se reflete no reconhecimento de novas aberturas de intervenção procedimental e processual. 

Vejamos então, em segundo lugar, a noção de contrainteressados

O Código de Processo nos Tribunais Administrativos (doravante designado por CPTA) faz expressa referência à figura dos contrainteressados nos artigos 57º e 68º nº2, no domínio do contencioso de atos administrativos. Estabelece, então, que tanto nos processos de impugnação de atos administrativos como nos processos de condenação, para além da entidade que praticou o ato em causa, também devem ser demandados os titulares de interesses contrapostos aos do autor. 
Trata-se de domínios em que há sujeitos privados envolvidos no litígio, ou seja, terceiros que são prejudicados diretamente com a procedência do pedido, na medida em que os seus interesses coincidem com os da Administração. 
Nos termos do art.57º CPTA, “para além da entidade autora do ato impugnado, são obrigatoriamente demandados os contrainteressados a quem o provimento do processo impugnatório possa diretamente prejudicar ou que tenham legítimo interesse na manutenção do ato impugnado e que possam ser identificados em função da relação material em causa ou dos documentos contidos no processo administrativo.”
Com base neste preceito, podemos identificar, na categoria de contrainteressado, duas espécies de pessoas, que deverão ser citadas no processo:
1.    Aquelas que são diretamente prejudicadas pela anulação ou declaração de nulidade do ato impugnado; 
2.    Aquelas cujo prejuízo não resulta diretamente dessa anulação ou declaração de nulidade, mas que têm interesse legítimo na manutenção do ato, visto que verão a sua esfera jurídica afetada. 

Esta citação no processo justifica-se para assegurar a tutela jurisdicional efetiva (art. 266º/1 CRP) e o contraditório (art. 32º/5 CRP), na medida em que é importante que sejam chamados ao processo os sujeitos (sejam particulares ou entidades públicas) que tenham interesses contrapostos aos do autor, aos quais deve ser assegurada uma palavra para (tentar) impedir a produção de efeitos negativos na sua esfera jurídica.
Por isso, a noção de contrainteressado terá de ser construída a partir do prejuízo que alguém terá se não for chamado a juízo. 
Confere-se, deste modo, legitimidade passiva a todos aqueles que possam ser prejudicados pela anulação do ato, numa situação de litisconsórcio necessário passivo, em que têm de ser chamados à ação todos aqueles que são prejudicados pelo provimento do processo impugnatório, e não só a entidade demandada. 
Concluímos daqui que só se poderão identificar os contrainteressados em função da análise concreta da relação material controvertida e do prejuízo que poderá advir do desfecho do seu processo impugnatório. 

No entanto, esta é uma matéria muito debatida na doutrina e jurisprudência, pelo que cabe referir, aqui, algumas posições divergentes
Em primeiro lugar, destaco a posição defendida pelo Professor Vasco Pereira da Silva, segundo a qual os contrainteressados são verdadeiros sujeitos de relações jurídicas administrativas multilaterais, as quais dão origem a uma “rede” de ligações jurídicas entre múltiplos sujeitos que são titulares de posições de vantagem juridicamente protegidas, pelo que devem gozar dos correspondentes poderes processuais. Desta forma, o legislador está a “abrir” o Contencioso Administrativo à proteção dos direitos e interesses dos impropriamente chamados de “terceiros”. Porém, o Professor considera que ao adotar a expressão tradicional de “contrainteressados”, que é marcada pela lógica bilateralista clássica, e sem definir rigorosamente qual o seu papel efetivo no processo, o legislador confina tal intervenção ao lado passivo no processo, numa posição secundarizada em face da Administração. Por isso, na opinião do Professor Vasco Pereira da Silva, o novo paradigma das relações administrativas multilaterais no Direito Administrativo substantivo implica a revalorização e reclassificação da posição dos, impropriamente, chamados terceiros no Contencioso Administrativo, como sujeitos principais dotados de legitimidade ativa e passiva, sendo lamentável a ausência de tratamento desta figura nas regras gerais, bem como, a falta de uma regulação mais detalhada da sua participação. Assim, e embora, já se tenha avançado num bom sentido de qualificar os contrainteressados como sujeitos das relações multilaterais, falta ainda tratá-los como sujeitos principais. 
Professor Rui Machete preconizou a adoção de um critério restritivo, baseado na teoria da proteção da norma, quanto ao preenchimento do pressuposto processual da legitimidade, tanto do lado ativo como do lado passivo, no que toca à categoria dos contrainteressados. 
Por seu turno, o Professor Mário Aroso de Almeida discorda deste entendimento, uma vez que se estaria a restringir o universo dos que são admitidos a obter tutela dos tribunais administrativos, em prejuízo dos seus interesses, e ainda devido ao facto de essa solução não se ajustar ao regime consagrado no CPTA. Assim, no entendimento do Professor Mário Aroso de Almeida, os contrainteressados têm de ser identificáveis à partida como titulares de interesses possivelmente contrários aos do autor (conceito mais lato de contrainteressados), porque fundados em situações jurídicas subjetivas que serão afetadas pela eventual procedência da ação. 
No entendimento do Professor Paulo Otero, têm de estar presentes interesses que possam vir a ser diretamente prejudicados através da atuação da administração, seja pela anulação do ato ou não. O Autor destaca a questão de saber quando é que se pode considerar que alguém pode ser prejudicado, através de cinco posições: 
                        i.         O ato recorrido é fonte de direitos ou interesses legítimos que podem provocar transtorno ao particular;
                      ii.         Quando o ato seja fonte de obrigações;
                    iii.         Se o ato em questão for pressuposto de efeitos pessoais ou patrimoniais;
                    iv.         Tem um interesse direto na manutenção do ato;
                      v.         Se o particular vai de alguma forma sentir os efeitos da anulação do ato.

Importa ainda fazer uma distinção contrainteressados e cointeressados. Estes últimos, na definição do Professor Vieira de Andrade, são “os terceiros que tenham interesse em que não se dê provimento ao pedido do autor”. Enquanto que os primeiros são aqueles que tenham interesse direto e pessoal em que não se dê provimento à ação, ou seja, em regra, são os particulares nos processos dirigidos contra a administração. 

Destaco agora o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 12 de novembro de 2015, Processo Nº01018/15. A questão que se discute é a de saber se um concorrente classificado em 4º lugar num concurso destinado a uma adjudicação de uma empreitada pode ser considerado contrainteressado na ação anulatória deduzida pelo concorrente classificado em 6º lugar contra a entidade que abriu tal concurso.
Foi então concluído, pelo Supremo Tribunal Administrativo, que só o adjudicatário da obra pública em causa podia ser qualificado como contrainteressado, uma vez que estando a qualidade de contrainteressado associada ao prejuízo que advirá da procedência da ação impugnatória, a anulação do ato impugnado só acarretará dano para o adjudicatário, na medida em que este ver-se-á afastado da posição de vantagem em que se encontrava colocado: ficaria impossibilitado de realizar a obra que lhe tinha sido adjudicada. Todos os outros oponentes ao concurso iriam beneficiar do ato anulatório, na medida em que seria refeito o processo administrativo, abrindo a possibilidade de todos serem vencedores do concurso e a obra ser-lhes, assim, adjudicada. Isto significa que todos os outros concorrentes, que não o adjudicatário, têm um interesse idêntico ao do autor, pelo que a sua intervenção no litígio nunca poderá ser feita através da figura do art. 57º CPTA. 
Desta forma, a recorrente em causa não poderá intervir como contrainteressada, por ter um interesse convergente com o do autor: beneficia com a eventual anulação do ato.

Concluindo, entendo que o legislador avançou positivamente na consideração da figura dos contrainteressados, na medida em que tornou obrigatória a sua participação em juízo, nos termos do art.10º nº1, 57º e 68º nº2 CPTA. Por outro lado, existe ainda espaço para desenvolvimentos, no sentido de não se limitar a figura dos contrainteressados ao litisconsórcio necessário passivo. Podem ainda ser adotadas outras medidas para uma maior adequação desta figura ao Contencioso Administrativo atual, nomeadamente proceder a uma regulação mais detalhada da participação dos contrainteressados no processo administrativo, visto serem entendidos como partes e não como meros terceiros da relação administrativa, como entende o Professor Vasco Pereira da Silva.  

Bibliografia:
1.    Mário Aroso De Almeida, «Manual de Processo Administrativo», 3ª ed., Almedina, Coimbra, 2017. 
2.    Vieira De Andrade, «A Justiça Administrativa (Lições)», 15ª edição, Almedina, Coimbra, 2016. 
3.    Vasco Pereira Da Silva, «O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise – Ensaio Sobre as Acções no Novo Processo Administrativo», 2ª edição, Almedina, Coimbra, 2009. 
4.    Paulo Otero, «Os contra-interessados em contencioso administrativo: fundamento função e determinação do universo em recurso contencioso de ato final de procedimento concursal», in AAVV, Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Rogério Soares, Coimbra editora 2001
5.    Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 12/11/2015; processo nº 01018/15

Catarina Moreira 
Turma A Subturma 7 Nº56745





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