I – Enquadramento.
Delimitação do objeto do comentário
Em sede de regulação do pressuposto processual
da legitimidade ativa, o art. 9.º, n.º 2 do Código de Processo nos Tribunais
Administrativos (CPTA) procede a um alargamento da legitimidade processual
(relativamente à regra geral que decorre do n.º 1 do mesmo preceito) a quem não
alegue ser parte numa relação material que se proponha submeter à apreciação do
tribunal.
Esta norma, procurando concretizar o
direito fundamental de participação política através do exercício do direito de
ação popular - constitucionalmente previsto no art. 52.º, n.º 3 da Constituição da
República Portuguesa (CRP) -, vem reconhecer, em termos genéricos, legitimidade
ativa aos cidadãos e a um conjunto de entidades para utilizarem qualquer meio
processual, existente no contencioso administrativo, para defesa de “valores e bens constitucionalmente
protegidos como a saúde pública, o ambiente, o urbanismo, o ordenamento do
território, a qualidade de vida, o património cultural e os bens do Estado, das
Regiões Autónomas e das autarquia locais”.
Da utilização, na letra do preceito, da
expressão “nos termos previstos na lei”,
decorre a remissão para a Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto (LPPAP), à qual é
reservada a missão de densificar os concretos termos segundo os quais poderá
ser exercido o direito de ação pelos atores populares.
Contudo, a Doutrina tem identificado alguns
problemas de interpretação e de delimitação do âmbito de aplicação de determinados
preceitos contidos neste diploma – nomeadamente, dos seus artigos 13.º e ss.
Efetivamente, tem-se suscitado a questão de saber se (i) o regime instituído pela LPPAP deve ser integralmente aplicado –
i.e., na sua globalidade e sem necessidade de se proceder a qualquer distinção
-, sempre que estejamos perante uma “ação popular” (lato sensu) ou se, pelo contrário, (ii) devemos proceder a uma destrinça entre diferentes modalidades
de ações populares que nos leve, a final,
a concluir pela presença de preceitos na LPPAP cuja aplicabilidade se deve
cingir a alguma dessas categorias (por se mostrarem especialmente direcionados
e vocacionados para apenas uma delas).
No essencial, é esta a questão central que
nos propomos a desenvolver no presente comentário.
II – As diferentes modalidades de ação popular abrangidas
pela LPPAP: a tutela de interesses difusos em sentido próprio e a tutela de interesses
individuais homogéneos.
Sumariamente (brevitatis causae), podemos distinguir as situações de tutela de interesses difusos em sentido estrito ou
próprio, das situações de tutela de interesses
individuais homogéneos do seguinte modo:
1. na primeira, releva uma atuação uti cives,
em que o autor popular intervém no processo na sua qualidade de membro da
sociedade, sem ter sido diretamente afetado nos seus direitos ou interesses
individuais; este atua em defesa de um bem comunitário, insuscetível de
apropriação individual, cuja titularidade é indivisível e irredutivelmente
supra-individual; neste caso, pode nem haver danos causados a ninguém em
particular (v.g., o caso de uma descarga
poluente num rio, que se limitou a matar muitos peixes).
2. na
segunda, pelo contrário, existem lesados e o autor pode ser um deles; estão em
causa situações puramente individuais, cujo exercício ocorre coletivamente por se
identificar uma origem comum; a apontada homogeneidade decorre da constatação
de que a lesão em causa não afeta apenas uma pessoa, mas uma pluralidade delas.
III – A limitação do âmbito de aplicação dos
artigos 14.º, 15.º e 19.º da LPPAP apenas às ações populares de tutela de
interesses individuais homogéneos.
Em função da distinção acabada de
traçar, alguns Autores têm considerado que os art. 14.º, 15.º e 19.º da LPPAP
apenas são aplicáveis às situações de tutela de interesses individuais homogéneos.
Consequentemente, de acordo com este entendimento, os referidos preceitos não terão
aplicação quando, pelo contrário, esteja em causa a tutela de interesses
difusos proprio sensu.
Estas disposições pretendem regular
situações semelhantes às que no direito no direito norte-americano são
qualificadas como class actions,
decorrentes de situações de lesão de
massas, em que um conjunto bastante alargado de pessoas é afetado nos seus direitos
por um único evento. Deste modo, pretende-se sobretudo garantir a apreciação
jurisdicional do caso numa única ação.
Assim, resulta da incidência conjugada
dessas normas que o autor popular representa na ação os eventuais titulares de
direitos ou interesses individuais lesados, a menos que estes exerçam um
direito de auto-exclusão. Significa isto que se estabelece sobre os eventuais
lesados o ónus de virem ao processo declarar que não aceitam ser representados
pelo autor, sob pena de ficarem vinculados pelo efeito de caso julgado da
sentença, ao qual é atribuída eficácia geral, salvo no caso de a ação vir a ser
julgada improcedente por insuficiência de provas.
IV - Conclusões. Posição Adotada.
Deve começar-se por concluir que, ainda
que de forma não expressamente assumida, a LPPAP regula duas modalidades
diferentes de ação popular: (i) a que
tem por objeto a tutela de interesses difusos, em sentido estrito ou próprio; e
(ii) a que corresponde a situações de
class actions. O regime dos arts.
14.º, 15.º e 19.º da Lei n.º 83/95 foi pensado apenas para esta segunda
modalidade.
Contudo, temos algumas dúvidas (algumas
delas já igualmente manifestadas na Doutrina, v.g., por M. AROSO DE ALMEIDA) quanto à bondade da solução adotada
no diploma legal sob análise.
Efetivamente, seria preferível que se
tivesse evitado misturar a regulação da problemática das class actions, que tem por finalidade a tutela de interesses
individuais homogéneos, com a regulação do exercício do direito de ação popular
de tutela de interesses difusos em sentido próprio, pois tal opção introduz alguma
confusão desnecessária, com consequências, desde logo, no plano da interpretação
do regime aí instituído.
Esta falta de preocupação legislativa em
distinguir claramente estas duas realidades distintas – que, valorativamente,
impõem um tratamento diverso -, submetendo-as a uma regulação aparentemente
unitária, arrasta consigo consequências na concretização dogmática das figuras
operada pela Doutrina. Efetivamente, fomenta o surgimento de certas orientações
doutrinárias que, se perfilhadas, conduzem a questionáveis limitações da
legitimidade popular (afetando, consequentemente, direitos constitucionalmente
consagrados, como o de participação cívica na vida pública por via da ação
popular) e com as quais, salvo a devida vénia, não podemos concordar.
Esta confusão de conceitos leva a que
alguns Autores pretendam exigir, para o exercício do direito de ação para
tutela de interesses difusos proprio
sensu, a titularidade de uma conexão diferenciada com o bem a proteger,
que, na prática, em muitas situações, dificilmente se diferenciará da
titularidade de um verdadeiro interesse individual homogéneo. Essa doutrina
parte da definição do interesse difuso como um interesse dotado de uma dupla
dimensão, por um lado individual e por outro lado supra-individual, para
sustentar que “a legitimidade popular não
seja atribuída a qualquer cidadão, mas apenas aos titulares (isto é, a cada um
dos titulares) do interesse difuso ameaçado ou ofendido. Esta legitimidade não
deve ser atribuída a qualquer pessoa, mas apenas a quem, por ser titular do
interesse difuso que se pretende defender, tenha uma relação com o objeto da
ação popular, ou, numa outra perspetiva, possa exigir algo do demandado (ou de
algum dos vários demandados) nessa ação” (cfr. M. TEIXEIRA DE SOUSA, A legitimidade popular na tutela dos interesses
difusos, p.
215).
Quanto a este ponto, seguimos o entendimento
preconizado por M. AROSO DE ALMEIDA, que considera esta linha de raciocínio perigosa,
porque conduz à descaraterização do direito fundamental de ação popular, em
termos que, em última análise, se afiguram inconstitucionais e “podem ter consequências gravíssimas, num
país em que os tribunais não demonstram qualquer sensibilidade para a promoção
da efetividade da tutela dos direitos fundamentais” (cfr. Sobre a
legitimidade popular no contencioso administrativo português, p. 55). Assim, verificamos que estes tendem,
ainda hoje, a rejeitar a admissibilidade das ações ao menor pretexto, em manifesta violação do princípio
do acesso à justiça que resulta da CRP e que, no contencioso administrativo, encontra
consagração expressa no art. 7.º do CPTA.
Em jeito de conclusão deste comentário,
podemos afirmar perentoriamente que, tendo em conta a incontornável importância
da participação política que carateriza o direito de ação popular, enquanto modo
de participação cívica na vida pública, é mister concluir que a titularidade
do estatuto de cidadão deve ser o único critério constitucionalmente
admissível no qual deve assentar a legitimidade para o exercício do direito
fundamental de ação popular em defesa de interesses difusos em sentido próprio. Efetivamente, como decorre da CRP e
do próprio art. 2.º da Lei n.º 83/95, a legitimidade popular é reconhecida a
todo o cidadão, no gozo dos seus direitos civis e políticos.
Bibliografia
ALMEIDA, Mário Aroso de. Comentário ao código de
processo nos tribunais administrativos. Coimbra: Almedina, 2017.
—. "Sobre a legitimidade popular no contencioso administrativo
português." in: Cadernos de justiça administrativa, Set.-Out.
2013: p. 50 - 56.
—. Manual de Processo Administrativo. Coimbra: Almedina, 2016.
ANDRADE, José Vieira de. A justiça administrativa. Coimbra:
Almedina, 2016.
CANOTILHO, Gomes; e MOREIRA, Vital. Constituição da República
portuguesa: anotada. Coimbra: Coimbra Editora, 2007.
MARTINS, António Payan. Class actions em Portugal - Para uma análise
da Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto. Lisboa: Cosmos, 1999.
MIRANDA, Jorge; e MEDEIROS, Rui. Constituição da República
Portuguesa Anotada. 2.ª ed. vol. tomo I. Coimbra: Coimbra Editora, 2010.
SOUSA, Miguel Teixeira de. A legitimidade popular na tutela dos
interesses difusos. Lisboa: Lex, 2013.
Bruno Sintra da Silva,
aluno n.º 57244, 4.º ano, Turma A.
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