A
segregação entre a matéria urbanística e de ordenamento do território no âmbito
do art.4/1/l ETAF
Na
revisão de 2015, não obstante o Governo e a comissão revisora terem a intenção
de alargar a jurisdição administrativa no que concerne à alinea l), assistiu-se
a um grande golpe, passando a mesma a incluir apenas (e de forma expressa) a
violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo.
Sem prejuízo, estou
“ingenuamente” convencida de que se poderia ter tomado uma opção diferente ([1]), esta solução dita de
“meio termo”[2]
poderia ter incluído as matérias previstas no projeto de revisão, nomeadamente
o ordenamento do território.
Ao refletir um pouco
sobre a relação do ordenamento do território com o urbanismo, pude concluir
que, sem embargo de existir uma separação conceitual, são duas matérias
complementares a nível prático. Partindo da principal característica distintiva
– a amplitude dos fins prosseguidos - é inegável que o direito do ordenamento
do território prossegue fins mais amplos do que os do direito do urbanismo, no
entanto no que concerne às regras de ocupação, uso e transformação do solo, a
aplicação das mesmas vacila se não abrangermos a análise das diferentes normas
legais sobre a utilização do solo e sobre os diversos tipos de planos
territoriais.
O reconhecimento da existência desta conexão entre
as matérias é, de um modo geral, feito tanto pela doutrina[3] como pela lei: tome-se
como exemplo a Lei de Bases Gerais de Política Pública de Solos, de Ordenamento
de Território e Urbanismo - Lei n.º 31/2014, de 30 de Maio – que não estabelece
qualquer distinção entre as temáticas.
No mesmo sentido, o
legislador aditou à LQCA o art. 75-A[4], que traduz um alargamento
da competência material dos tribunais administrativos. Como se tem verificado,
esta norma faz surgir algumas situações paradoxais[5]: o facto de a conduta do
agente violar somente uma norma de ordenamento, leva ao afastamento do art.4/1/l;
por outro lado, se se verificar cumulativamente a prática de um ilícito de mera
ordenação social em matéria de urbanismo, aplicar-se-á a alínea l. Ora, tendo
em conta a complementaridade supra mencionada deste dois tipos de normas,
o que justifica então esta dicotomia?
Na exposição de motivos
do anteprojecto de revisão do CPTA e do ETAF, a necessidade de ser adotada uma
“perspetiva equilibrada, que salvaguarde ponderosas razões de ordem pratica”[6] foi a principal
justificação para a limitação ao urbanismo. As ditas razões de ordem prática prendem-se
com a falta de recursos humanos e materiais no aparelho judiciário
administrativo. Mas será que os tribunais administrativos não suportariam esse
alargamento?
De acordo com os dados
estatísticos do SIEJ, relativamente ao movimento de processos nos tribunais
administrativos e fiscais de 1ª instância no ano de 2015, registou-se um total
de 10 007 novas entradas. Se fizermos uma análise comparativa com os anos
posteriores, verificamos que só em 2017 se ultrapassou este valor, sendo que em
2018 entraram somente 9 517 processos em matéria administrativa. Isto é,
mesmo surgindo a possibilidade de recurso de contraordenação, não houve um aumento
significativo do número de processos. Sem prejuízo do exposto, se olharmos para
as estatísticas dos processos pendentes, verificamos que houve efetivamente um
aumento[7], no entanto, feitas as
contas, apenas 1,32% destes processos pendentes correspondem a recursos de contraordenação.
Esta reduzida percentagem leva-me a concluir que o alargamento da jurisdição às
contraordenações não desequilibrou o sistema.
Para além disso, desde
2015, o tribunal de conflitos tem vindo a pronunciar-se[8], por diversas vezes, sobre
casos de fronteira entre ordenamento do território e urbanismo[9], o que demonstra que a
coerência do sistema está a ser afetada: nem os próprios tribunais compreendem a
regra geral que determina a jurisdição competente.
Deste modo, considero a
solução do legislador insatisfatória e que, não obstante haver a possibilidade
deste tipo de litígios incluírem-se no âmbito administrativo por força da
aliena o), a verdade é que não se
justifica ter que recorrer a este critério residual quando pode existir um
preceito que inclua o ordenamento do território.
Adriana Alves (56939)
[1] No mesmo sentido: JORGE PAÇÃO, Novidades em sede
de jurisdição dos tribunais administrativos : em especial, as três
novas alíneas do artigo 4.º, n.º 1 do ETAF in Comentários ao novo código do procedimento
administrativo, Lisboa, 2016, pag. 199
[2] MARIO AROSO DE ALMEIDA, Manual
de Processo Administrativo, Coimbra, 2019, pág.176
[3] JORGE PAÇÃO, ob cit;
ISABEL CELESTE M. FONSECA E JOSÉ AVENTINO FERREIRA DANTAS, Sanções
(contraordenacionais) administrativas e o âmbito da jurisdição administrativa:
quando o coração quer mas a razão não deixa, in Revista do CEJ, Nº 2, 2º
semestre, 2015, pág. 237ss.
[4] Aditado pelo Art. 3.º da Lei n.º
114/2015 – DR n.º 168/2015, em vigor a partir de 2015-10-27
[5] Sobre as mesmas vide ISABEL
CELESTE M. FONSECA e JOSÉ AVENTINO FERREIRA DANTAS, ob cit., pág. 255 e 256
[6] Exposição de motivos do anteprojecto
de revisão do CPTA e do ETAF, pág.3; para mais desenvolvimentos: CARLA AMADO GOMES,
ANA FERNANDA NEVES, TIAGO SERRÃO, O Anteprojeto
de revisão do CPTA e do ETAF em debate, AAFDL, 2015.
[7]Pode ser consultado em: https://estatisticas.justica.gov.pt/sites/siej/pt-pt; aumento de 21 838 (2015) para 22 840
processos pendentes (2018), sendo que apenas 301 correspondem a recursos de
contraordenação.
[8] Ac. T.Confl. 7/12/2017 proc.
021/17; Ac. T.Confl. 26/10/2017 proc. 031/17; Ac. T.Confl. 26/10/2017 proc.
043/17; Ac. T.Confl. 25/10/2018 proc. 09/18; Ac. T.Confl. 21/03/2019 proc.
037/18; Ac. T.Confl. 19/6/2019 proc.
010/19
[9] Tal como o Conselho de Magistratura
previu no seu parecer de 2014 sobre o projeto de revisão do ETAF e do CPTA e
legislação conexa em matéria de contencioso administrativo – pág.6
Bibliografia
· JORGE
PAÇÃO, Novidades em sede de jurisdição dos tribunais administrativos: em
especial, as três novas alíneas do artigo 4.º, n.º 1 do ETAF in Comentários
ao novo código do procedimento administrativo, Lisboa, 2016
·
MARIO
AROSO DE ALMEIDA, Manual de Processo Administrativo, Coimbra, 2019
· ISABEL
CELESTE M. FONSECA E JOSÉ AVENTINO FERREIRA DANTAS, Sanções
(contraordenacionais) administrativas e o âmbito da jurisdição administrativa:
quando o coração quer mas a razão não deixa, in Revista do CEJ, Nº 2, 2º
semestre (2015)
· CARLA AMADO GOMES,
ANA FERNANDA NEVES, TIAGO SERRÃO, O Anteprojeto
de revisão do CPTA e do ETAF em debate, AAFDL, 2015.
· FERNANDO ALVES CORREIA, Manual de Direito do
Urbanismo, vol I, 2ª ed.,
Almedina, 2004
· LICÍNIO LOPES MARTINS, Âmbito da jurisdição administrativa no Estatuto
dos Tribunais Administrativos e Fiscais revisto, in Cadernos de Justiça
Administrativa, Nº 106, Julho/Agosto 2014
· NEVES,
Ana Fernandes, Âmbito de
Jurisdição e outras Alterações ao ETAF, in e-pública, n.º 2, 2014;
·
DE ALMEIDA, DUARTE, O
ilícito de mera ordenação social na confluência de jurisdições: tolerável ou
desejável?, in Cadernos de Justiça Administrativa, X Seminário de Justiça
Administrativa, CEJUR, Braga, n.º 71, 2008.
Netgrafia
Comentários
Enviar um comentário