Deve o Ministério Público representar o Estado?


No artigo 219º da CRP, atribui-se ao Ministério Público – doravante, MP - a representação do Estado e a defesa dos interesses que a lei determinar, assim como a participação na execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania, a tarefa de exercer a ação penal orientada pelo princípio da legalidade e a defesa da legalidade democrática.
Esta versatilidade de funções está presente no contencioso administrativo, tendo em conta que o MP exerce várias funções. Nomeadamente, as de promoção da ação pública na defesa da legalidade e de certos interesses coletivos, de amicus curiae e de representação do Estado[1], de acordo com o artigo 51º do ETAF. Assim, o MP assume um leque de posições processuais, podendo assumir tanto a posição do autor, de réu ou a de amicus curiae.
Cabe-me ter uma perspetiva crítica desta situação, visto que esta amplitude de poderes pode levar a conflitos de interesses.
Desenvolvendo mais a questão, cumpre referir as propostas do Anteprojeto da Reforma de 2015 do CPTA, de forma a melhor compreender o regime que veio a ser aprovado em 2015.
A necessidade desta alteração legislativa baseou-se no facto de a doutrina administrativa[2] sublinhar que a atuação do MP em várias vestes gera, exatamente, o problema do conflito de atuações.
Afigura-se importante abordar o âmbito objetivo e subjetivo da representação do Estado pelo MP. O âmbito objetivo é referente a que matérias é que o MP é competente para representar o Estado. Já o âmbito subjetivo, aborda o representado, ou seja, o Estado.
A primeira questão a tratar será a de saber qual o âmbito de atuação do MP quando representa o Estado.
No texto do CPTA anterior a 2015, no seu artigo 11º/2, o Ministério Público era habilitado a representar o Estado nos processos que tenham por objeto relações contratuais e de responsabilidade. Com a reforma de 2015, o artigo 11º/1, que passa a regular esta questão, já não restringe a representação do Estado por parte do MP aos processos que tenham por objeto relações contratuais e de responsabilidade. Na verdade, não impõe qualquer âmbito objetivo. Desta forma, o MP representa o Estado em todas as ações, independentemente do seu objeto.
Importa ainda atentar no disposto no artigo 51º do ETAF, também alterado pela reforma de 2015. Antes da reforma, a redação deste artigo previa que: “compete ao MP representar o Estado […], exercendo, para o efeito, os poderes que a lei processual lhe confere.” Após a reforma, prevê que “compete ao MP representar o Estado […], exercendo, para o efeito, os poderes que a lei lhe confere.” Ao comparar estas duas redações, conclui-se que se retirou a referência à lei “processual”. Tal pode significar, segundo o professor Ricardo Pedro[3], que a competência da representação do Estado pelo MP não se rege apenas pela lei processual, mas de qualquer ato que se qualifique como lei.
Assim, cumpre analisar as normas relativas à competência do MP presentes no respetivo Estatuto (EMP). O artigo 63º/1a) e b) do EMP prevê que ao departamento do contencioso do Estado compete a representação do Estado em juízo, na defesa dos seus interesses patrimoniais.
Assim, tal como resulta do EMP, conclui-se que ao constituir uma das atribuições do MP a representação processual do Estado, não podemos ignorar o facto de se limitar a sua representação à defesa dos interesses patrimoniais do Estado. Tal está, aliás, em consonância, segundo o professor Ricardo Pedro, com a leitura que é feita do artigo 219º da CRP.
Desta forma, o critério de atribuição de competência ao MP em matéria de representação do Estado será a patrimonialidade dos interesses do Estado.
Relativamente ao âmbito subjetivo, tem sido adiantada a resposta de que o MP só representa o Estado e não qualquer outra entidade pública. Neste sentido, numa interpretação restritiva do artigo 51º do ETAF, o MP apenas representa o Estado e não outros institutos públicos. O professor Ricardo Pedro refere ainda que o Estado aqui em questão será o Estado Administração. Assim, só Estado em sentido restrito – e não outras pessoas coletivas públicas, nem mesmo serviços personalizados estatais – é representado pelo MP.
Tendo definido, então, os âmbitos da representação do Estado pelo MP, cumpre ter uma análise crítica.
Sendo ainda consensual que a função do MP é a defesa da legalidade democrática e que, no contencioso administrativo, tal função se concretiza na promoção da ação pública, teremos um problema quando o MP tem que defender o Estado num caso em que o mesmo é acusado de infringir a referida legalidade democrática. De facto, a função de defesa da legalidade deve prevalecer relativamente à representação do Estado[4].
A meu ver, concordando com o professor Tiago Serrão, este seria o critério de solucionamento nas situações de conflito. Porém, tal levaria à solução de supressão da função de representação do Estado pelo MP, algo referido por Vieira de Andrade, Alexandra Leitão, Ricardo Pedro e Tiago Serrão.
Assim, o legislador deve ir mais longe em matéria de representação processual do Estado. Como o professor Tiago Serrão refere: “Dito de modo claro, em meu entender, deve ocorrer a supressão, pura e simples, da representação processual do Estado pelo MP no contencioso administrativo[5].”
Tal não levará a qualquer tipo de problema constitucional pois, como o professor Vieira de Andrade determina, a Constituição não impõe que, no contexto do contencioso administrativo atual, a função de representação processual do Estado seja atribuída ao MP. Aliás, só com a ausência do MP nesse domínio “se resolverá satisfatoriamente o conflito virtual entre a autonomia do MP e a representação do Estado-parte […], bem como, em algumas situações, a dificuldade de conciliação da defesa da Administração (e do interesse público) com a estrita garantia da legalidade.”[6]
Perante o CPTA anterior, o professor Ricardo Pedro enumera as várias opções que poderiam ter sido tomadas: “(i) manter a situação como estava; (ii) alterar no sentido da abertura da representação do Estado por advogados privados; e (iii) criar uma nova figura pública para a representação do Estado[7]. Porém, ressalva-se que estas soluções implicariam uma ponderação de outros elementos para além dos jurídicos, como a análise dos custos associados à contratação de advogados privados e como isso poderia ter impacto no orçamento de Estado. Estas opções poderiam ainda ser consideradas na próxima revisão do CPTA, mas com as ressalvas feitas pelo autor.


Bibliografia:
- Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo. 3ª Edição, 2017, Coimbra, Almedina.
- Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa (Lições). 10ª Edição, 2010, Coimbra, Almedina.
- Carla Amado Gomes, Ana Fernanda Neves, Tiago Serrão, Comentários à revisão do ETAF e CPTA, 2017, 3ª edição, Lisboa, AAFDL Editora
- Carla Amado Gomes, Ana Fernanda Neves e Tiago Serrão, O Anteprojeto de Revisão do CPTA e do ETAF em Debate, Lisboa, 2014, AAFDL Editora

Ana Sofia Nogueira Afonso Gonçalves, nr 56700, Turma 4A, Subturma 7


[1]Carla Amado Gomes, Ana Fernanda Neves e Tiago Serrão, Comentários à revisão do ETAF e CPTA, 2017, 3ª edição, Lisboa, AAFDL Editora – p. 505
[2] José Carlos Vieira de Andrade, A justiça administrativa, p. 144; Alexandra Leitão, “A representação do Estado”, pp. 191-208; Tiago Serrão “A representação processual…” pp. 225-243, e Manuel Pereira Augusto de Matos “O MP e a representação…” pp. 245-268.
[3] Ricardo Pedro, Representação do Estado pelo MP no CPTA in Carla Amado Gomes, Ana Fernanda Neves e Tiago Serrão, Comentários à revisão do ETAF e CPTA, 2017, 3ª edição, Lisboa, AAFDL Editora – p. 512
[5] Tiago Serrão, A representação processual do Estado no Anteprojeto de revisão do Código de Processo nos Tribunais Administrativos in Carla Amado Gomes, Ana Fernanda Neves e Tiago Serrão, O Anteprojeto de Revisão do CPTA e do ETAF em Debate – p.237
[6] Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa, p.144
[7] Ricardo Pedro, Representação do Estado pelo Ministério Público no Código de Processo nos Tribunais Administrativos revisto: introdução a algumas questões. In Carla Amado Gomes, Ana Fernanda Neves, Tiago Serrão, Comentários à revisão do ETAF e CPTA, 2017, 3ª edição, Lisboa, AAFDL Editora, p. 508

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