Impugnação de normas administrativas



Primeiramente, importa ab initio referir que a impugnação de normas administrativas vem regulada no Código de Processo nos Tribunais Administrativos (doravante designado pelas siglas CPTA), nomeadamente, nos artigos 72º e seguintes. Deve ainda entender-se, por normas, designadamente, regulamentos emanados pela Administração Pública, ou seja, regulamentos administrativos.

Ademais, adianta-se, que esta impugnação irá seguir forma de ação administrativa especial, com a qual se visa, nos termos do artigo 46º CPTA, a declaração da ilegalidade da norma que foi emitida ao abrigo de disposições de direito administrativo. Avança-se ainda, que esta declaração de ilegalidade terá dois tipos efeitos, consoante o seu autor e consoante a norma seja mediata ou imediatamente aplicável, podendo ser restritos ao caso concreto, nos termos do artigo 73º/2 CPTA, ou ter força obrigatória geral, nos termos do artigo 73º/3 e 4 CPTA.

Em segundo lugar, creio ser necessário, numa questão de enquadramento, tentar explicar ou definir o que são, efetivamente, regulamentos. Ora, para isto teremos de partir da definição de atos administrativos do artigo 120º e fazer um raciocínio a contrario, ou seja, se os atos administrativos são individuais e concretos, as restantes disposições unilaterais que sejam gerais e/ou abstratas serão então consideráveis como regulamentos administrativos. Daqui se retira que os regulamentos têm, deste modo, de gozar de generalidade e/ou de abstração, tal como nos diz o professor Vasco Pereira da Silva. Neste sentido, o professor diz-nos que as disposições do CPTA relativas à impugnação de normas administrativas, dos artigos 72º e seguintes, são aplicáveis a todas as atuações jurídicas gerais e/ou abstratas, desde que sejam emanadas por autoridades publicas, que pertençam a qualquer das modalidades de administração publica, ou de particulares que com elas colaboram no âmbito do exercício da função administrativa. No mesmo seguimento de ideias, o professor Diogo Freitas do Amaral define os regulamentos administrativos como sendo “normas jurídicas emanadas no exercício do poder administrativo por um órgão da Administração ou por outra entidade publica ou privada para tal habilitada por lei”, o que nos leva a ter esse ato normativo como uma espécie de regra de conduta da vida social dotada de generalidade e abstração.

Por sua vez, o Mário Jorge Lemos Pinto, diz-nos que há que fazer uma distinção entre normas administrativas e normas legislativas, pois num certo ponto podemos deparar-nos com normas legislativas que contenham normas administrativas, por exemplo uma Lei que contenha disposições regulamentares. Existem dois critérios de distinção: um critério formal, pelo qual não seria possível impugnar contenciosamente leis administrativas, isto é, as normas administrativas contidas em atos legislativos; e um critério material, que por sua vez, já consentiria a impugnação de normas administrativas, ainda que essas fossem integradas num ato legislativo, pois a questão prendia-se com o conteúdo e não com a forma da norma. Neste ponto cabe referir algumas disposições legais de forma a perceber o que está constante na lei. Pois bem, o artigo 4º/2 a) do ETAF[1] exclui desde logo da jurisdição administrativa os atos praticados na função legislativa, logo leis e decretos-leis. Contudo, o artigo 268º/4 da Constituição da República Portuguesa (CRP) garante a impugnação de quaisquer atos administrativos, independente da sua forma. E ainda o artigo 52º CPTA prevê a impugnabilidade de qualquer ato administrativo independentemente da sua forma, podendo constar tanto de diploma legislativo, como de regulamento.

Deste modo, conclui-se que a forma do ato não terá tanta relevância, uma vez que não é o tipo de diploma que irá pautar a natureza da norma, mas sim o seu conteúdo, não havendo assim um critério formal de distinção. Certo é que uma norma primária, de hierarquia superior não pode constar de um regulamento, mas, pelo contrário, nada é dito quanto ao facto de uma norma inferior poder constar de uma lei.

Considera-se, então, a atividade regulamentar como sendo uma atividade secundária, desde que regule uma relação jurídico-administrativa no exercício do poder administrativo. Portanto, ser ou não atividade regulamentar irá depender do conteúdo e não da forma da norma.

Em suma, poder-se-á impugnar nos tribunais administrativos quaisquer normas emitidas por pessoas coletivas de direito publico, bem como pessoas coletivas de direito privado no uso de poderes públicos, desde que ao abrigo de disposições de direito administrativo. Por conseguinte, é de aceitar a impugnabilidade de uma norma administrativa que conste de um diploma legal de hierarquia superior, pelo menos na medida em que essa seja a única solução possível com o princípio da tutela jurisdicional efetiva, com fim a proteger um direito fundamental constitucionalmente consagrado.
Efetivamente, se uma lei incorporar disposições normativas de direito administrativo parece, desde logo, ser a jurisdição administrativa competente para a sua impugnação.

Face ao exposto, cabe ainda fazer uma breve referência à forma de impugnação de normas administrativas, que por sua vez sofreu alterações com a reforma do CPTA. Ora, tal como descreve o professor Vasco Pereira da Silva, antes da reforma existia uma dualidade “esquizofrénica” de meios processuais para impugnação de regulamentos, uma vez que os dois meios possíveis[2] apresentavam requisitos diferentes em realidade idênticas e possuíam um âmbito de aplicação parcialmente sobreposto. Após a reforma, termina-se com a essa dualidade, dando lugar a uma uniformização do regime do contencioso regulamentar, através do surgimento da ação administrativa especial, mantendo-se, ainda assim, a possibilidade de apreciação incidental das normas administrativas, a propósito do pedido principal de anulação de atos administrativos. Além do mais, continua a ser possível, surgindo como “padrão” a impugnação através do meio processual genérico com algumas alterações, fazendo agora depender a aplicação do meio processual, não só da verificação alternativa da aplicabilidade imediata[3] ou da existência de três casos de desaplicação[4] pelos tribunais daquela norma, mas também da legitimidade para impugnar. Efetivamente, o artigo 73º do CPTA elenca-nos os pressupostos da legitimidade quanto a normas imediatamente operativas (nº1) e quanto a normas mediatamente operativas (nº2), podendo se tratar quer de ação publica, de ação para defesa de interesses próprio ou de ação popular. Por fim, relativamente aos prazos de impugnação a regra geral consta do artigo 74º/1, sendo que o pedido de declaração de ilegalidade poderá ser feito a todo o tempo.

Em suma, e segundo Mário Jorge Lemos Pinto, o contencioso de normas administrativas apresenta uma natureza mista, ainda que se demonstre mais objetivista do que aparenta. Se, por um lado, se procura um equilíbrio e harmonia do ordenamento dando legitimidade de intervenção tanto ao Ministério Público, como aos autores populares e particulares, ainda que destes dois últimos seja condicionada aos casos em que alguém uma lesão (presente ou provável) decorrente da aplicação da norma, por outro lado, numa perspetiva mais objetivista, permite-se que seja possível qualquer das pessoas que constam no artigo 73º CPTA possa pedir a declaração de ilegalidade, alegando vícios de conteúdo lesivo dos seus direitos e/ou interesses, dando-se uma abertura às suas pretensões. De modo geral, e tendo em conta os efeitos da declaração de ilegalidade com força obrigatória geral, nos termos do artigo 76º CPTA, conclui-se que predomina o interesse publico, sendo o regime essencialmente objetivista para defesa da legalidade.





Bibliografia:
Silva, Vasco Pereira da – O Contencioso Administrativo no divã da Psicanálise, 2ª edição, 2009 – Almedina
Almeida, Mário Aroso – Manual de Processo Administrativo, 2ª edição, 2016 – Almedina
Amaral, Diogo Freitas do – Curso de Direito Administrativo, vol. II, 3ª ed., 2016 - Almedina
Pinto, Mário Jorge Lemos - Impugnação de Normas e Ilegalidade Por Omissão: No Contencioso Administrativo Português, 2009 – Coimbra Editora



Mafalda Garcia 
nº 56913


[1] Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais
[2] Na verdade eram três os meios possíveis de impugnação de regulamentos: por via incidental, através do qual a norma era apreciada por via indireta, uma vez que era incidente da questão principal, contudo, este meio processual não poderia ser considerado autónomo; por meio processual genérico, onde era declarada a ilegalidade de (quaisquer) normas administrativas; por um meio processual especial, através da impugnação das normas, que por sua vez tinha um âmbito de aplicação mais restrito por respeitar apenas a regulamentos provenientes da administração local comum (neste caso, considera o professor Vasco Pereira da Silva, que há uma espécie de assimilação processual dos regulamentos aos atos administrativos).
[3] Distinção entre normas mediata e imediatamente operativas, aludida no artigo 73º CPTA. São imediatamente operativas as normas cujos efeitos se produzem imediatamente ela sua própria publicação; e são normas mediatamente operativas aquelas cuja incidência no círculo de direito e interesses dos particulares carece de um ato de aplicação.
[4] Regra geral, a declaração da norma depende da existência de 3 casos concretos de desaplicação da norma por qualquer tribunal com fundamento na sua ilegalidade (73º/4 CPTA).

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