A ambiguidade da representação do Estado pelo Ministério Público – Análise à luz da Ação Pública


A Ambiguidade da Representação do Estado pelo Ministério Público – Análise à luz da Ação Pública

Ao Ministério Público (doravante designado por MP), ao abrigo do desiderato que lhe é cometido pela Lei Fundamental, no seu artigo 219º, incumbe “representar o Estado e defender os interesses que a lei determinar”, também o artigo 5º nº 1 al. a) do Estatuto do Ministério Público (doravante designado de EMP) comete ao MP a representação do Estado. Chamamos, de igual modo, à colação o artigo 51º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) que reza que compete ao MP “representar o Estado, defender a legalidade democrática e promover a realização do interesse público”. Destarte, o MP desempenha vários papéis: representação do Estado, o poder de ser autor da ação pública, o poder de intervir nos processos administrativos em que não seja parte e em sede de recurso, intervenção no âmbito dos recursos jurisdicionais que não tenha interposto, acrescendo a legitimidade para interposição de recursos jurisdicionais de decisões ilegais, de recursos para uniformização de jurisprudência e de recursos de revisão (vide artigos 85.º, 146.º, 141.º, n.º1, 152.º, n.º2 e 155.º do ETAF)[1].

Parece-nos prudente afirmar que de todos os papéis a que se encontra cometido o MP -no seguimento da reforma do Contencioso Administrativo, que reconheceu o respetivo papel de sujeito processual em detrimento da sua intervenção como "auxiliar do juiz"[2] - o seu papel principal e mais relevante é o de autor da designada ação pública, que o artigo 9.º n.º 2 do CPTA vem alargar ao “domínio da propositura de ações em defesa dos interesses constitucionalmente protegidos nele indicados.”[3]

Estabeleceu-se que “tanto o ator público como o ator popular agem para a defesa da legalidade e do interesse público”[4], independentemente do interesse pessoal na demanda (artigo 9º, n.º2), prosseguindo assim a tutela objetiva de valores e bens constitucionalmente consagrados, designadamente no artigo 52º da Constituição da República Portuguesa, cabendo, neste âmbito, chamar também à colação o já mencionado artigo 9º nº2 do CPTA[5].

Retomando o ponto das competências do Ministério público, podemos concluir que  este desempenha, concomitantemente, funções estritamente objetivistas de proteção da legalidade democrática, do interesse público e dos valores definidos no art 9º nº2  e funções subjetivistas que visam a defesa de uma parte, na qual podemos inserir a representação do Estado[6].

Esta contraposição mitiga-se pelo facto de o Estado prosseguir o interesse público e não interesses particulares. Ainda assim, nem sempre o interesse público e a legalidade são coincidentes[7], e na nossa humilde opinião nem sempre o interesse público é coincidente com o interesse do Estado. Cabe questionar o que sucede nestes casos.

Para alguns autores, a atuação do Ministério Público tem de se pautar pela legalidade, imparcialidade e objetividade. Nestes termos, em caso de contradição deverá ceder a função de representação do Estado[8].  Deste modo, o Estado não deve ser representado pelo MP quando a sua pretensão seja manifestamente ilegal, recorrendo à aplicação do artigo 69.º do Estatuto do Ministério Público, segundo o qual havendo conflito entre entidades, pessoas ou interesses que o MP deva representar, “o procurador da República solicita à Ordem dos Advogados a indicação de um advogado para representar uma das partes.”.

Refere a Professora Alexandra Leitão que este artigo não se aplica a todos os casos em que surjam duvidas quanto à legalidade da pretensão defendida em juízo pelo Estado.

Quanto à ação pública em particular, em que o MP tenha que defender interesses conflituantes cabe, primeiramente, esclarecer que a propositura da ação pública por parte do MP em representação do Estado não se confunde com o exercício da ação pública intentada em nome da proteção dos interesses que compete diretamente ao MP defender, uma vez que os interesses do estado nem sempre coincidem com estes últimos[9].

Na ação pública intentada pelo Ministério Público (como autor) em nome da proteção de interesses que competem diretamente ao MP defender, contra o estado (parte demandada) aplicamos o artigo 69º do EMP, isto porque, como acima referimos, os interesses do estado nem sempre coincidem com os interesses que ao Ministério Público cumpre defender, nos termos da Constituição e da lei, e no nosso entender o interesse prosseguido pela ação pública deve prevalecer, acompanhamos assim a posição de alexandra leitão e maria isabel costa.

É pertinente questionar se é ou não certo o Ministério Público não deter o monopólio da representação do Estado em Juízo, uma vez que no caso de o MP exercer o seu direito de ação pública contra o Estado, não poderá o Ministério Público representar este último em juízo. O parecer nº 8/82 de 9 de Março de 82 da Comissão Constitucional aponta no sentido de que, pese embora a representação do estado caber ao Ministério Público, não se exclui a possibilidade de esta ser atribuída por lei a outras entidades[10], neste sentido aponta também o artigo 69 do EMP.

Consideramos, todavia, que a possibilidade de atribuir, em caso de conflito de interesses, a representação judiciária do estado a um advogado, prevista no artigo 69º, cedendo a representação do estado pelo Ministério Público, pode configurar uma preterição do imperativo constitucional constante do artigo 219º da CRP, segundo o qual “Ao Ministério Público compete representar o Estado.”, isto porque decorre diretamente desta norma constitucional que deve prevalecer a representação do estado[11].

Correntemente considera-se que o MP representa o estado exercendo a ação penal e defendendo a legalidade democrática. O MP representa também o estado na defesa de interesses públicos. Por outro lado, o MP não representa o Estado no caso de haver conflito de interesses, artigo 69º do EMP.  Há aqui uma ambiguidade em que o MP tem duas “máscaras”: a de advogado do estado e a de procurador do Estado – sendo que noutros ordenamentos se estabelece uma diferenciação entre “advocacia do estado” e “procuradoria do estado”[12].

Entendemos que deveria haver uma clara definição do legislador quanto ao papel do Ministério Público na representação do estado, e por isso, a título de iure condendo, deveria ser adotada uma distinção entre advocacia do estado e procuradoria do estado, evitando eventuais conflitos de interesses e permitindo ao Ministério Público o exercício das suas funções de forma plena, aproveitando a sua elevada qualidade técnica tanto para a defesa dos interesses do estado como para a defesa do interesse público, sem acréscimo de custos para o erário público, no caso de ser necessário designar um advogado, nos termos do artigo 69º do EMP.




[1] mário aroso de almeida, Manual de Processo Administrativo, Lisboa, Almedina 2017, 3ª Ed., págs. 66 a 67.
[2] VASCO PEREIRA DA SILVA, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, Lisboa, Almedina, 2008, pág. 271.
[3] MARIO AROSO DE ALMEIDA, op. cit., p. 65.
[4] VASCO PEREIRA DA SILVA, op. cit 272.
[5] Vide CPTA: “(...)valores e bens constitucionalmente protegidos como a saúde pública, o ambiente, o urbanismo, o ordenamento do território, a qualidade de vida, o património cultural (...)”.
[6] ALEXANDRA LEITÃO, A representação do Estado pelo Ministério Público nos Tribunais Administrativos, in Julgar, Coimbra Editora, pág. 197, neste sentido também vai o parecer do Conselho Consultivo da PGR nº7/2014.
[7] ALEXANDRA LEITÃO, Op. cit. pág. 197.
[8] ALEXANDRA LEITÃO, OP. CITE , PÁG. 197
[9] ALEXANDRA LEITÃO, OP. CITE, PÁG. 202.
[10] MANUEL PEREIRA AUGUSTO DE MATOS et. Al., Anteprojeto de Revisão do CPTA e do ETAF em Debate, lisboa, AAFDL 2014, PÁG. 252.
[11] Op. Cite., pág. 253.
[12] VITAL MOREIRA E GOMES CANOTILHO, Constituição da República Anotada vol. II, Coimbra, Cimbra Editora 2014, PÁG. 603.

Maria Carolina da Cunha Santos, nº 52476

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